terça-feira, 26 de fevereiro de 2008

Pôr-de-árvore ou de como a vida pode ser bela e insuportável


Já não é a primeira vez que me sento à janela quando as árvores se prestam a este fino ocaso.
Tenho uma perspectiva clara e aberta sobre as coisas (algumas), sobre ideias e frases e conceitos que nos transportam à essência, à raiz do pensar sobre a beleza que se derrama mais ou menos (nem sempre de forma justa) sobre essas coisas, sobre nós, sobre a vida que é bela e insuportável.
Volto à janela, no último pestanejar sobre a árvore em cinza, tão esteticamente cheia de equilíbrio, tão pétala de rosa em fim de tarde (será amanhecer?) que contém em si a perfeição das tuas mãos sobre a música, da perfeição da voz dos teus dedos, da perfeição do sopro-ventania que dos olhos das crianças me chega a correr sobre as pedras das ruas em direcção ao meu coração, sabendo sempre a exacta medida desse lume-abraço necessário para que o sangue não páre.
É esta a beleza da vida, este pôr-de-árvore que é já canto-amálgama de chegada e de partida...


Fecho a janela e tudo se desfaz na mesma cinza que é também a dor da árvore a gemer por dentro da paisagem.

quarta-feira, 20 de fevereiro de 2008

Muito tempo depois... Para Syl



Porquê?
Não seria fácil quebrar os círculos?
Seremos menos loucos do que o mundo quando deixamos que os sonhos morram numa bela farda que nos traz o «modo funcionário de viver»? (esta frase está na ordem do dia na blogosfera...)
Custará tanto dizer não?

Mad World!


Houve um tempo assim: ouvia a chuva por dentro da mesma forma que os teus dedos tocavam na vidraça feita de uma certa luz que dos meus descia sobre ti.
Era tudo: a água que corria melancólica e calma por sobre o espaço vazio, a voz que era a música do incêndio sobre esse rio...

Houve um tempo assim: entre palavras e sons se estendiam os dedos e os lábios-torrente, essa mesma,a cascata, a que caía sobre a vidraça (que era olhos e corpos e tudo o que sobre o tempo e a emoção partia à deriva),correndo em forma de água sempre melancólica e calma preenchendo um espaço vazio.

Houve esse tempo, mas existe um abismo rasgando essa face calma e melancólica da pressa de nunca chegar a teu lado, do outro lado da vidraça, onde não se ouve a torrente da música das palavras, mudas na tua presença.

terça-feira, 12 de fevereiro de 2008

Desculpa.
Esta não é a melhor forma de começar o que quer que seja - frase ou texto ou retrato ou fotocópia sumida a representar qualquer coisa como a vida. Continuo com esta inquietação, este talento ou vocação de amora que sangra para dentro como diz o António naquela crónica que leio todas as noites. Serão noites? Deveria dizer dias porque aqui onde estou não consigo estabelecer dentro de mim essa fronteira entre o tempo, mas sei que está sempre escuro e que isso me pesa uma sombra demasiado intensa sobre as horas.
Apetece-me, por vezes, como hoje, entrar precipitadamente nessa noite escura (cá está de novo a voz do António, maldita fixação de últimos tempos), indiferente a tudo, porque tudo é uma cortina cinzenta teimosamente pesada para que eu a enfrente e recolha os aplausos.
Imagino-me a cair do palco e não me desagrada essa imagem, diria que é assustadoramente agradável, talvez junto ao chão brote um rio que deixei fluir sobre um corpo que já não me pertence, talvez seja um terreno fértil coberto de erva e papoilas e frutos e laranjas e aves que trazem nos bicos as mãos com que nunca aprenderei Bach ou Liszt, quebrando o silêncio do piano...
Desculpa este desabafo, não é fácil ouvir palavras tão à solta, à doida, saídas do vazio, da ausência deste lugar onde me encontro.
Talvez se conseguisse dormir me passasse esta vontade de cordel dado ao vento, prendendo o papel entre os dedos (prende bem os nós, senão desfaz-se na brisa, na vaga, na leve linha horizontal que fenece).
Desculpa, sim desculpem, F., M., nem o calor dos vossos sonhos me embala (é neste momento que descubro que não é só da minha vida que não gosto, afinal, também não me tenho em grande estima). Vou apagar a luz do vosso quarto. Os meus olhos, apenas os meus olhos que não se fecham dentro deste cansaço, permanecerão velas a guiar os vossos passos.
Desculpa. Queria entrar, ó António... Aqui onde todas as paisagens são distantes.