sábado, 18 de fevereiro de 2012

Dicionário de coisas inúteis

Tão no centro do sentido do não, tão presente no aqui e agora.
Inútil como todas as coisas gastas.
Como as palavras do Eugénio em escrita permanente na parede do WC, como os teus olhos que nunca foram peixes verdes, como o meu corpo que nunca foi um rio, mas pó seco e térreo pisado até se tornar apenas mais caminho.
No dicionário das coisas inúteis está o nada que é tudo de Pessoa, estão lábios e dentes mastigando palavras e vestidos rasgados por força da impossibilidade.
Lá estará sempre o kilt vermelho pendurado à espera, qual veste nupcial, qual pueril trapo gasto talhado para um corpo que não cresceu porque já nascera assim.
Neste dicionário de coisas inúteis há papéis escritos pela azert de fita vermelha e preta e sons de uma música envelhecida dos discos a girar no quarto fechado, inutilmente cerrado por fora e em vão fechado por dentro, onde existia a luz da prata dos chocolates e dos desenhos enigmáticos que cheiravam, estranha e inutilmente, a laranjas, a pomares, a corpos aninhados sobre si, contemplando o rio.
Inútil a luz do Tejo.
Inútil a penumbra do Mondego.
Finalmente, a maior de todas as inutilidades: as palavras sedentas de arrependimento no meio de tantas coisas inúteis e tão vãs como acreditar no liebestraum ou ouvir Liszt.

terça-feira, 14 de fevereiro de 2012

Se viesses ver-me hoje à tardinha...

A inevitável crise de irritação que nasce da espera.
Ide. Como o outro. Para o diabo. Sem mim.
E com Pessoa e Régio de braçado, seguirei cantando, não sei bem o quê, mas hoje cantei que me fartei entre os pratos sujos da louça branca que pus a lavar na máquina da vida.

Quando se escreve uma não carta de amor... (uma não frase)

Não tem destinatário.
Esta afirmação da negação virá do tempo em que Lins e Godinho se questionavam com o que havia de ser da lágrima vã e de tanto que se trocara...
Mas esse tempo de bustos de vidro e estátuas de carne era aquele em que as amendoeiras frutificavam, em que não havia mortes nem mortos (fosse ou não dia de aniversário).
Agora o que há de ser é o que não é, o não ser das cartas que não serão cartas. A língua está gasta de dizer tanto, irrecuperável, vazia, seca.
Alguém tragou toda a saliva e remoeu no escuro das sílabas surdas, não entendendo o gotejar das memórias, das manhãs claras por dentro dos olhos do sol.
Uma não carta. Não texto. Não amor.
Que ficará, no fim de tudo, no nosso céu interior? (lá vem de novo Pessoa, o mesmo das cartas ridículas...)
Não é de facto uma carta de amor.
O agora é negação do ontem do que poderia do que foi quase e não foi...
Neste dia, em particular, negamos o amor.
Nego o coração.
Uma carta.
Não.

sábado, 28 de janeiro de 2012

Objetos Diários

Nos objetos diários caberá toda e qualquer definição:
O espaço vazio entre a cadeira e a mesa emoldura o mesmo vazio que também é espaço entre cada palavra dita, por dizer, gritada, entoada ou arrancada, encostada ao corpo como uma cadeira ou cama onde repousam essas e outras palavras.
E na decoração do nada, há sempre uma parede branca onde se cravam os olhos despojados, olhos como telas escorrendo no invisível interior do quarto em que descansam as pálpebras caladas e mudas na dor silenciada.

A pele que há em mim

Esta é a música do dia.
Soa-me bem. Vale uma audição, versão dueto Márcia /JP Simões. Muito agradável e com sentido (coisa rara).
Deixo a letra. Ouçam a melodia.


Quando o dia entardeceu
E o teu corpo tocou
Num recanto do meu
Uma dança acordou
E o sol apareceu
De gigante ficou
Num instante apagou
O sereno do céu
E a calma a aguardar lugar em mim
O desejo a contar segundo o fim.
Foi num ar que te deu
E o teu canto mudou
E o teu corpo do meu
Uma trança arrancou
E o sangue arrefeceu
E o meu pé aterrou
Minha voz sussurrou
O meu sonho morreu
Dá-me o mar, o meu rio, minha calçada.
Dá-me o quarto vazio da minha casa
Vou deixar-te no fio da tua fala.
Sobre a pele que há em mim
Tu não sabes nada.
Quando o amor se acabou
E o meu corpo esqueceu
O caminho onde andou
Nos recantos do teu
E o luar se apagou
E a noite emudeceu
O frio fundo do céu
Foi descendo e ficou.
Mas a mágoa não mora mais em mim
Já passou, desgastei
Para lá do fim
É preciso partir
É o preço do amor
Para voltar a viver
Já não sinto o sabor
A suor e pavor
Do teu colo a ferver
Do teu sangue de flor
Já não quero saber.
Dá-me o mar, o meu rio, a minha estrada.
O quarto vazio na madrugada
Vou deixar-te no frio da tua fala.
Na vertigem da voz
Quando enfim se cala.